AFINAL, O QUE É SER FEMININA?
São bem leves os fios, e qualquer brisa banal faz mexer alguns deles, que vão parar em cima dos olhos, narizes e bocas, resistindo às mãos que os contêm. Os cabelos que hoje revestem as cabeças das mulheres brasileiras parecem ter entrado em consenso sobre seu formato ideal – ou é isso que um olhar menos atento pode pensar.
Afinal, ver diversidade pelas ruas do país pode ser um exercício um tanto duro, já que ela aparenta estar estranhamente restrita a um número bem pequeno de estilos: a imensa maioria das mulheres do país carrega madeixas lisas, de fios simetricamente alinhados, que se estendem longamente pelas orelhas, ombros e espaldas.
“No Brasil, é realmente uma marca de feminilidade ter o cabelo longo e bem cuidado e usar o cabelo solto."
- ANA PAULA CAVALCANTI SIMIONI, SOCIÓLOGA DA USP ESPECIALISTA EM GÊNERO
A professora, que analisa a questão do gênero pelo instrumento da arte, nos ajudou a entender qual é esse padrão de feminilidade no qual as mulheres estão inseridas – e no qual o cabelo constitui um poderoso símbolo – e também a visualizar como é construído esse padrão.
NÃO FOI SEMPRE ASSIM...
Se conseguimos diferenciar o masculino do feminino, hoje, é porque há um conjunto de comportamentos tradicionalmente atribuídos a ambos os gêneros. Ao mesmo tempo em que isso não é regra absoluta e há um grande número de mulheres que ativamente fogem à esta figura, senão a maioria delas, algumas normas continuam a ditar o que Ana Paula chama de um discurso mais comum sobre feminilidade, o da mulher “feminina, delicada, fútil, ligada à indústria da moda, passiva, vítima do olhar masculino no sentido de ser um objeto desse olhar”.
Entre os signos estéticos, destacam-se as formas do corpo como magras e curvilíneas, roupas, unhas, uso de maquiagens e itens de moda como joias e lenços e os cabelos
Mas não foi sempre assim – estas marcas de gênero nem sempre foram associados à feminilidade. A docente reitera algumas vezes a importância de fazer recortes tem-porais e até locais quando pensa-mos o assunto, já que estes símbo-los mudaram ao longo do tempo.
Na cultura ocidental, da Idade Moderna até pouco antes do período da Revolução Francesa, grande parte da simbologia que é hoje atribuída à marca de gênero era um mero recorte de classe. Em sociedades tão estratificadas quanto os modelos europeus de civilização, elementos estéticos como roupas e vestidos galantes, maquiagem elaborada, sapatos de salto, mangas bufantes, a ostentação de joias e de pitorescos penteados de cabelo – que se não fossem longos eram prontamente substituídos por perucas – estavam associados à riqueza dos nobres, dos reis e príncipes.
RETRATO DO REI FRANCÊS LUIS XIV, POR HYACINTHE RIGAUD (1701)
O nosso estranhamento para com a moda da época é bem justificado: se para nós este homem está coberto de símbolos associados ao gênero feminino, qualquer transeunte das ruas da França pré-revolucionária saberia prontamente identificá-lo como homem nobre. Suas roupas e elementos ostentavam riqueza e serviam como um importante marcador de classe, que o diferenciava da pobreza dos artesãos e camponeses.
Foi só durante a eclosão e desenvolvimento da Revolução Francesa que as coisas começaram a mudar: o movimento tem origem popular, matriz que logo deu conta de condenar socialmente – e, de certa forma, literalmente, com cabeças rolando – a exagerada ostentação estética como marcador de classe.
"As mídias são, ao mesmo tempo, construtoras e produtos dos ideais femininos que temos como referência."
- ANA PAULA CAVALCANTI SIMIONI, SOCIÓLOGA DA USP ESPECIALISTA EM GÊNERO
Mas não demorou muito para que a revolução tomasse caminhos me-nos fraternos e assumisse contor-nos de outra divisão de classes, especialmente depois do fenômeno da ascensão burguesa. Aquelas fa-mílias que viram oportunidade eco-nômica na comercialização de pro-dutos passaram a acumular algu-ma renda, e, junto das mudanças em educação, leitura e imprensa,
a configuração do núcleo familiar também começou a mudar. Se antes todos os membros traba-lhavam nas terras e propriedades em que residiam, passando boa parte de seus dias juntos e, de certa forma, dividindo as tarefas da propriedade, agora boa parte dos homens se retirava para os merca-dos e o trabalho fora de casa – o domínio masculino do espaço público.
Às mulheres cabia o ambiente privado, as casas e atividades que com ela vinham. À nós foram atribuídas a maternidade integral, e a imagem da mulher-mãe passou a ser o ideal de feminilidade da Idade Contemporânea. Características como delicadeza, sensibilidade, sutileza, subserviência, abdicação do eu e da identidade foram impressas sobre o ideal feminino, e a noção da mulher como objeto das necessidades ao seu redor – aquela que coloca sua subjetividade em segundo plano – passou a ser dominante. Junto do ideal de delicadeza veio a simbologia estética, que deveria refletir este mesmo ideal de feminilidade. A mulher como objeto do olhar masculino passou a assumir como características de sensualidade não só as roupas elegantes, as joias e maquiagem, mas também os cabelos cultivados, cuidados e penteados exuberantemente.
IN THE DINING ROOM, POR BERTHE MORISOT (1886)
Estes ideais de construção familiar e gênero estão ainda muito intrincados na cultura ocidental, tendo sido carregados do começo da Idade Contemporânea até agora, apesar de algumas mudanças estarem começando a figurar.
FORA DA CAIXINHA
Em meados do século XX, alguma diversidade surge na arte modernista e nas mídias que, segundo a professora Ana Paula, são ao mesmo tempo construtoras e produto dos ideais femininos que temos como referência.
Ainda em seu princípio, na eclosão dos movimentos modernistas, ocorreu uma mudança dos padrões estéticos: a arte têxtil atraiu as mãos de mulheres que estavam destinadas à conquista do espaço público e precisavam de roupas mais confortáveis, que lhes permitissem movimento mais livre e praticidade. Os cabelos não ganham particular destaque aqui, mas a mudança de rumos começa a apontar para um maior domínio do próprio corpo.
Se conseguimos diferenciar o masculino do feminino, hoje,
é porque há um conjunto de comportamentos tradicionalmente atribuídos a ambos os gêneros
O movimento não parou por aí, e Ana Paula conta que “há uma eclosão de muitas possibilidades do feminino e do feminismo a partir dos anos 70”. Na arte, ela dá o exemplo da obra de Cindy Sherman, que tensiona os limites da feminilidade por meio da paródia como uma forma de resistir à norma. É a diversidade, tanto nas ruas como na abstração, tomando espaço.
Tendo chegado ao século XXI com bocas abertas a questionar normas estéticas, o surgimento de movimentos específicos para mulheres das mais diferentes características não foi surpresa. É claro que os avanços cosméticos disseminaram de forma mais acessível o liso, mas não podemos mais deixar de olhar para mulheres
organizadas que hoje recuperam seus cabelos naturais ou então os modificam de modo a também tensionar as normas – e vamos pensar aqui em cacheadas, afro, ruivas, crespas, cabelos azuis, vermelhos, raspados e a grande variedade de cortes assimétricos que ocupam cada vez mais as ruas dos grandes centros urbanos.
A TENSÃO DE SHERMAN FOI INCORPORADA PELA INDÚSTRIA FEITO NUMA PARCERIA DA ARTISTA COM A MARCA DE COSMÉTICOS MAC
O MODELO DA CONSTRUTIVISTA RUSSA ALEXANDRA POPOVA ADICIONAVA ELEMENTOS FUNCIONAIS ÀS ROUPAS FEMININAS, COMO BOLSO E LARGURA CONFORTÁVEL. ESSES ELEMENTOS CONSTITUEM UMA ROUPA FEITA PARA UMA MMULHER SUJEITO LIVRE
Ana Paula comenta sobre a necessidade de adaptação da indústria cultural: “Ela também entende que está trabalhando com vários mercados de consumo. Ela não pode imaginar um produto sempre voltado para uma mulher norteamericana, de classe média, loira, porque ela sabe que vai esbarrar nas realidades empíricas muito diversas”.
Os movimentos estão crescendo nas ruas, nas redes sociais e na própria indústria, e não há quem os pare. Parece mesmo que estamos tensionando velhas normas, e nos resta saber se a feminilidade ainda será um espaço castrador ou um lugar de experimentações.